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Dengue: como acontece a forma grave da doença?




Em 2022, já tivemos até agora mais casos de dengue do que no ano de 2021 inteiro. Esses casos têm chegado em serviços de urgência e emergência em grande volume e, em alguns serviços, geraram um volume de atendimentos maior que o visto no pico de infecções pelo novo coronavírus.


Uma demanda comum expressa pelos pacientes é a preocupação com a contagem de plaquetas — que consistem em estruturas celulares do sangue cuja função é mediar a hemostasia, isto é, a capacidade do sangue de controlar sangramentos. O vírus da dengue as destrói e inibe sua produção na medula óssea. A trombocitopenia (queda do número de plaquetas), quando ocorre, costuma ser leve (entre 100 e 150 mil). Ocasionalmente, valores menores que 10 mil são encontrados. De uma forma geral, valores menores de plaquetas aumentam a chance de haver sangramentos.


Os sangramentos relacionados à queda de plaquetas são geralmente de mucosas (como nariz, gengivas, estômago, intestino), que podem se manifestar com sangramentos após escovar os dentes, epistaxe (sangramento nasal), vômitos com sangue ou passagem de melena (fezes escurecidas devido à presença de sangue digerido). A gravidade do sangramento existe num contínuo. Ele pode ser mínimo e facilmente contido; pode ser grave e necessitar de transfusão.


Abaixo de qual contagem de plaquetas preciso receber transfusão na dengue?

Curiosamente, a experiência clínica sugere que transfundir plaquetas não traz benefício, mesmo em casos graves de trombocitopenia (menor que 50 mil). Entretanto, alguns especialistas consideram razoável transfundi-las no paciente com sangramento grave e plaquetas abaixo de 10 mil. Pessoas sem sangramento não devem ser transfundidas no intuito de preveni-lo, uma vez que essa terapêutica tende a trazer mais riscos do que benefícios.


O que preocupa na dengue, além dos sangramentos?

O vazamento de plasma (fração do sangue quando retiradas as hemácias) é a grande preocupação. De maneira provavelmente indireta e pouco esclarecida, a infecção pelo vírus da dengue causa disfunção do endotélio (tecido que reveste as paredes internas dos vasos sanguíneos). Isso permite que mais plasma passe do sangue para os tecidos. O volume de sangue pode diminuir gravemente — o que chamamos hipovolemia —, e isso pode prejudicar a perfusão dos órgãos. Clinicamente, pode se manifestar com taquicardia, hipotensão e extremidades frias como evidência de hipovolemia, e ascite e derrame pleural como evidência do vazamento de plasma. Tenho outro texto aqui em que explico como avaliamos o paciente com formas graves da dengue.


Posso sangrar sem ter queda nas plaquetas?

Definitivamente, sim! O sangramento da dengue é multifatorial, e a contagem de plaquetas é só parte disso. A disfunção de endotélio também predispõe a sangramentos. É possível que a dengue também altere os fatores de coagulação que circulam no sangue. Muito disso, no entanto, permanece pouco esclarecido. Sangramentos graves com necessidade de intervenção de urgência podem, portanto, ocorrer em valores de plaquetas não tão baixos.


Em que momento esse vazamento de plasma ocorre?

O vazamento de plasma acontece na fase crítica da dengue, em que o paciente já está sem febre (geralmente, três a sete dias após o início dos sintomas). O quadro clínico e as fases da infecção estão explicados em maior profundidade aqui. Isso sugere fortemente um mecanismo imunológico para o vazamento de plasma (i.e. relacionado a resposta do sistema imune do indivíduo e não à ação direta do vírus).


Existe algum exame que avalia se estou tendo esse vazamento de plasma?

Sim! É aí que entra o hemograma. Ele avalia vários parâmetros do sangue, incluindo a contagem de plaquetas e o hematócrito. Este corresponde à fração do volume do sangue formado pelas hemácias, que são a principal célula do sangue. O hematócrito pode ser solicitado isoladamente e é útil em locais de baixos recursos, pois demanda apenas uma centrifugadora e é muito barato.


Cautela e julgamento clínico devem ser exercidos ao interpretar o hematócrito. Um hematócrito aumentado indica uma fração grande de hemácias em relação a plasma. Isso pode ocorrer como consequência de vazamento de plasma, que concentra o sangue, mas pode ser visto numa desidratação (não necessariamente grave e que pode ser corrigida bebendo um litro de água). Por outro lado, uma pessoa pode ter um sangramento oculto dentro do estômago e um vazamento de plasma na mesma proporção. Assim, o hematócrito está normal, mas o paciente está em condição grave, uma vez que o volume total de sangue no corpo caiu profundamente.


O que é a dengue hemorrágica?

Refere-se a uma classificação antiga da OMS (1997). Para diagnóstico, é necessário preencher todos os quatro critérios:

  1. Um quadro clínico compatível com dengue.

  2. Tendências hemorrágicas, manifestadas com sangramento visível, prova do laço positiva, etc.

  3. Trombocitopenia abaixo de 100 mil

  4. Hematócrito 20% acima do valor superior de normalidade, queda de 20% do hematócrito após hidratação, ou sinais de vazamento de plasma como ascite e derrame pleural.

Essa classificação de 1997 também descreve a síndrome do choque da dengue, que requer todos os critérios para dengue hemorrágica mais evidência de falência circulatória (como extremidades frias ou pulso fraco).

Um problema dessa classificação é que ela exclui muitos casos graves de dengue, incluindo pessoas que morreram como consequência da doença.

Hoje se utiliza com mais frequência uma nova classificação da OMS (2009), que divide os pacientes em dengue sem sinais de alarme, dengue com sinais de alarme (que você pode ler aqui) e dengue grave.

Consideramos a dengue grave conforme essa classificação quando qualquer um dos seguintes critérios for preenchido:

  1. Sangramento grave (a julgamento do médico)

  2. Evidência de disfunção orgânica de órgãos, como aumento de transaminases, alteração de consciência ou insuficiência orgânica.

  3. Vazamento grave de plasma levando a choque ou acúmulo de fluido com desconforto respiratório

Notar aqui que o valor das plaquetas, por si, não é diagnóstico de dengue com sinais de alarme nem dengue grave.


Com que frequência devo fazer um hemograma durante a dengue?

Há muitos protocolos de avaliação e tratamento da dengue. Referências americanas sugerem que todo doente, sem exceção, faça uma consulta e um hemograma diário até se recuperar. Considerando que a dengue é muito comum no Brasil, essa abordagem acaba sendo impraticável; não há comprovação de que ela seja necessária para prevenir mortes. O Ministério da Saúde, por outro lado, divide os pacientes com dengue nos grupos A, B, C e D, em ordem crescente de gravidade¹ . A avaliação clínica e laboratorial diária, por esse manual, não é necessária para os pacientes sem condições clínicas que os coloquem em maior risco, como idade avançada e algumas comorbidades, e com a prova do laço negativa (grupo A, que inclui a maior parte dos doentes). Para os outros grupos, consultas diárias ou internação hospitalar podem ser indicadas.


Referência


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