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A Cannabis medicinal não é tão interessante assim

Já faz décadas que vemos pessoas falarem do uso medicinal de Cannabis, porém só recentemente esse assunto virou uma coqueluche (com o perdão da ambiguidade). Médicos “especialistas” em Cannabis cobram muito bem e têm a agenda cheia. Criadores de conteúdo que falam da erva têm grande audiência, produzindo vídeos que ensinam do cultivo a receitas de doces. Sempre me pareceu curioso, entretanto, que uma droga de uso recreativo tivesse indicações médicas de uso. Eu, como médico, não poderia deixar de conhecê-las; de alguma forma, ao iniciar meus estudos nesse assunto, suspeitava que havia exageros a respeito.



“Comigo funcionou”

Anedotas sobre vidas positivamente mudadas pelo uso da maconha medicinal são contadas em podcasts, canais no Youtube e posts no Instagram. Como conteúdo informativo, parecem “vox pop” — na medida em que pessoas sem conhecimento aprofundado sobre um assunto são entrevistadas por jornalistas para opinar sobre ele. Considerando a baixa educação da população em crítica científica, a tendência é que esses relatos sejam divulgados com muita euforia e pouca análise. Impressiona-me, portanto, não ver o rigor científico adequado ao se falar da Cannabis e derivados, mesmo quando isso é feito por profissionais da saúde. Como qualquer fármaco, ela deve ser testada em estudos de qualidade, comparando-a com placebo antes que se saia difundindo seu uso. Uma reportagem na televisão de uma pessoa contando que teve sua doença curada por um medicamento não deve ser utilizada como evidência para recomendar seu uso. Não levar isso a sério pode levar a catástrofes como a promoção da cloroquina para o tratamento da infecção pela Covid-19 por grupos bolsonaristas.

Ela serve para o quê, na real?

Doenças crônicas podem remitir a qualquer momento, independentemente do uso de medicações. Dessa forma, condições como lombalgia crônica e dor oncológica podem apresentar melhora importante com placebo. Isso explica o benefício observado com tratamentos pseudocientíficos como Reiki, homeopatia e cristais. Extratos de Cannabis já foram muito estudados para tratamento da dor, e os resultados são mistos. Vários estudos foram publicados demonstrando benefício, mas muitos deles são de baixa qualidade e com alta chance de viés. Uma meta-análise que selecionou estudos considerado de baixa chance de viés concluiu que adicionar canabinoides a opioides (o tratamento padrão para dor oncológica) não reduziu dor¹. A prescrição de canabinoides é muito variável entre médicos que trabalham com dor, mesmo em locais onde a venda de Cannabis é legalizada. Isso mostra que seu uso ainda é controverso mesmo entre os especialistas no assunto. O uso de CBD (canabidiol) para tratamento de epilepsia é possivelmente o mais divulgado. São poucas as condições para as quais ele demonstrou benefício e está aprovado pelo FDA (agência regulatória americana): Lennox-Gastaut, Dravet, complexo de esclerose tuberosa — que são síndromes epiléticas muito incomuns e, ainda, o uso deve ser restrito aos casos refratários. Para a síndrome de Lennox-Gastaut, um estudo demonstrou que o CBD reduziu em 44% a frequência de convulsões, comparado com 22% por placebo em crianças². Embora estatisticamente significativo, ainda é um benefício pequeno. Dois canabinoides sintéticos, o dronabinol e a nabilona, são aprovados nos EUA para tratamento de náuseas e vômitos induzidos por quimioterapia e estímulo do apetite em doenças consumptivas.

“Não faz mal”

Eventos adversos do uso de canabinoides incluem tontura, boca seca, fadiga, sonolência, confusão e alucinação. Embora eventos graves não sejam consistentemente relatados, os efeitos a longo prazo não são bem estudados e não foram esclarecidos.


Fumada ou ingerida?

Dada a boa absorção das formulações ingeridas e os possíveis danos da inalação de fumaça, acho pouco provável que o fumo da Cannabis para fins medicinais seja recomendado de rotina algum dia. Alguns médicos prescritores de Cannabis medicinal recomendam, sim, o consumo da erva de forma semelhante ao uso recreativo, o que é bem controverso.

“Para dar aquela levantada no astral”

O CBD é vendido em alguns países como “nutracêutico”, e relatos de benefícios à saúde mental são vários. Essencialmente, ele não é psicoativo. Relatos de pessoas agindo com mais positividade, menos preocupação e menos ansiedade são mais atribuíveis ao efeito placebo — que é comum, por exemplo, quando se usam antidepressivos.

Onde vende?

No Brasil, o consumo de canabinoides para fins medicinais é legalizado, embora a fabricação e a venda interna sejam proscritas. Geralmente, os produtos são adquiridos por prescrição médica via importação. Start-ups fundadas por médicos jovens vendem esse serviço, tendo grandes lucros nesse mercado que tem crescido muito rápido.

Então você é contra?

Inovação em pesquisa é uma das coisas mais preciosas que a humanidade pode desenvolver. Há muito o que se estudar sobre canabinoides, e benefícios surpreendentes podem ser descobertos no futuro. Seu uso clínico, porém, deve ser feito com muita cautela para as indicações específicas onde foram demonstrados benefícios. Não sou contra o uso da Cannabis medicinal, mas acredito que toda inovação em medicina deve ser proposta com muita cautela.

Referências 1. Thiele EA, Marsh ED, French JA, Mazurkiewicz-Beldzinska M, Benbadis SR, Joshi C, Lyons PD, Taylor A, Roberts C, Sommerville K; GWPCARE4 Study Group. Cannabidiol in patients with seizures associated with Lennox-Gastaut syndrome (GWPCARE4): a randomised, double-blind, placebo-controlled phase 3 trial. Lancet. 2018 Mar 17;391(10125):1085–1096. doi: 10.1016/S0140–6736(18)30136–3. Epub 2018 Jan 26. PMID: 2. Boland EG, Bennett MI, Allgar V, Boland JW. Cannabinoids for adult cancer-related pain: systematic review and meta-analysis. BMJ Support Palliat Care. 2020 Mar;10(1):14–24. doi: 10.1136/bmjspcare-2019–002032. Epub 2020 Jan 20. PMID: 31959586.



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